Abraçar o desconhecido é meio que aceitar sua própria morte
e experimentar na arte é uma forma de se acostumar com o luto
Não tem coisa que mais me cause ansiedade do que mudanças ou situações que eu não consiga prever como vai ser. A incapacidade de imaginar todas as mini interações, ou como vou me sentir no momento por nunca ter passado por algo parecido me assombra. A maioria dos pensamentos que surgem quando situações dessa natureza se apresentam parte, curiosamente, de premissas de um medo das coisas serem rígidas ou imutáveis: chegar em um lugar e não poder sair, causar uma impressão ruim em alguém até o resto da vida dessa pessoa ou, o terror, ter que ficar presa pra sempre em uma situação que eu mesma me coloquei porque descobri em algum momento que não era isso que eu queria. O medo é tanto de que as coisas mudem, quanto de que elas permaneçam iguais para sempre.
Quero poder estar no controle da situação quando as coisas estão boas, e faço um esforço para que permaneçam, e quero estar no controle da situação quando ela está ruim, e em caso de precisar achar uma saída de emergência. O ruim é que, como bem sabemos, compartilhando a experiência que é existir no mundo, nem sempre a gente vai ter isso. O nosso par romântico pode terminar abruptamente com a gente quando pensávamos que estava tudo bem, podemos ser despejados, perder um familiar próximo e outras coisas terríveis. Além de grandes acontecimentos traumáticos, há também, num nível em menor escala mas ainda assim marcantes, mudanças que são inevitáveis e parte natural da vida: o corpo mudar e a gente mudar, o que implica em consequências que naquele determinado momento não queríamos, entre outras tantas coisas.
O que não paro de pensar é que toda a vez que a gente experiencia uma mudança, a gente também passa por uma espécie de luto. Luto de quem a gente foi, de quem a gente queria ser, das nossas próprias expectativas, o pesar e a saudade de não ter pessoas que antes eram muito importantes perto - e muitas vezes não porque elas morreram, mas porque a vida foi caminhando pra outra direção.
Eu consigo ver um paralelo que o medo do desconhecido vem de um medo muito mais antigo e primitivo que é o medo de morrer. A morte é uma das maiores coisas que a gente desconhece, ninguém passou por ela e voltou pra falar como era por lá (ou para quem acredite em reencarnação, não lembra desse momento específico). A morte é um tema que sempre me pega, já tive várias situações de crise ansiedade porque achava que ia cair durinha ali mesmo no chão sem ninguém pra me acudir, ia passar mal presa dentro de um elevador ou ia descobrir uma doença muito grave e não teria plano de saúde ou dinheiro qualquer pra custear o tratamento. A questão é que são todas coisas que podem acontecer… ou não.
É difícil aceitar sua própria morte, seu corpo e sua consciência deixando de existir. E o mais bizarro é que isso é uma das poucas coisas que a gente sabe que um dia vai acontecer. O medo da certeza às vezes é bem pior que o da incerteza.
Eu lembro de dizer que não assistia filme de terror porque tinha medo, até que um dia assisti um que não me deu tanto assim e me senti corajosa. Lembro do meu namorado na época dizer “viu como foi bom ter assistido? tu tens mais medo do medo do que da coisa em si”. E eu só consegui pensar que é verdade. Medo do medo, que doideira. Nem sabe como as coisas vão ser e já tá aí sofrendo. Desde então, eu tento não fazer com que esse excesso de controle e medo me impeça de fazer as coisas, de me jogar em uma situação que não conheço. Eu tento. Às vezes não dá certo, mas quando dá e consigo passar por uma situação que tinha uma resistência e atravessei por ela porque ativamente eu quis, eu me sinto corajosa como uma exploradora.
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Minha vó já tem 93 anos, ela fala sobre a própria morte como se fosse um item que a gente esqueceu de por na lista do supermercado. Apesar de ficar triste quando ela faz questão de lembrar que isso vai acontecer em algum momento, vejo é quase uma maneira dela fazer as pazes com sua própria finitude. Ela diz que queria construir uma capela no lado da casa, que queria ainda ver as plantas que cuidou florescerem e darem frutos ou fazer um cercado novo pros patos, logo em seguida ela conclui com um “porque sei que não vou durar muito tempo”. Olhando minha vó falar sobre os desejos dela, eles me parecem muito mais bonitos e necessários. Ela me traz essa urgência de viver o presente, que é onde o nosso espaço mental devia tá desde o início. Sei que ela deve ter medo, mas ela encara ele de frente diariamente.
O medo do desconhecido, do que e de como as coisas vão ser, de repente me parece um pouco menos assustador quando lembro da postura da minha vó diante da vida. “Porque sei que não vou durar muito tempo” me faz pensar sobre a grande escala das coisas, sobre como eu quero viver. Sobre explorar, descobrir mais coisas dentro do meu alcance enquanto estou aqui.
Recentemente eu pedi demissão por escolha própria. O que é muito assustador porque eu estou em outra cidade, uma cidade caríssima que definitivamente não conseguiria nesse momento me manter sozinha. Eu só dei esse passo porque tenho uma rede de apoio que eu sei que pode me oferecer um prato no almoço ou um teto na minha cabeça, mesmo que temporariamente. E isso só aconteceu também porque moro e me relaciono com alguém que me apoia tanto criativamente quanto profissionalmente e que me fez ver que era o momento de tentar. Acho que a gente não valoriza tanto as pessoas ao nosso redor que fazem a gente se sentir corajosas.
A principal causa do porquê decidi fazer isso é porque não vinha conseguindo criar, e não conseguir criar é uma parte muito importante da minha identidade, de como me vejo no mundo. Estava sendo uma espécie de autoaniquilação. Resolvi tirar duas semanas de férias primeiro pra descansar, algo que não fazia há mais de dois anos, e agora estou voltando aos poucos, buscando ideias pra me manter financeiramente num equilíbrio entre trabalho e quem eu quero ser ou como quero viver minha vida. Tentar ver se é possível, se não for possível nesse momento, vou atrás de outra coisa mas queria me dar essa tentativa. A gente se dá tão poucas tentativas.
Às vezes sinto que, por ter vindo de uma família que os pais tiveram que ralar muito do seu tempo e da sua própria dignidade em empregos terríveis pra dar uma qualidade de vida pra mim e pro meu irmão, se dar uma tentativa é um luxo. O Armando falou que a gente que veio de onde a gente veio jamais devia pensar essas coisas, de achar que tentar trabalhar com criatividade é um luxo, muito pelo contrário, a gente toma as decisões sabendo tudo o que está em risco.
É muito louco pensar também que esse gene do sentir medo, que garantiu a perpetuação da nossa espécie, afeta campos muito mais subjetivos como os espaços de criação. Eu estava tão imersa no emprego que eu estava que o pouco tempo que tinha eu impunha a mim mesma a expectativa de criar desenfreadamente, o que acabava me estagnando em tentar uma nova forma de me expressar ou uma nova mídia porque não queria perder tempo, porque não sabia qual seria o resultado final. Empaco pelo medo do medo de não conseguir. Eu esqueço dos acidentes felizes que podem acontecer só por ter tentado, das descobertas, só consigo imaginar os piores acidentes e de achar tudo o que eu faço terrível, sendo que o ponto de praticar não é esse.
Mas é aquilo, os cenários que a gente pode imaginar são proporcionais ao repertório que a gente tem para criá-los, e a gente tem uma tendência pra catastrofização. Tento exercitar mentalmente que também tem outros tipos de cenários em que coisas bonitas podem acontecer mas que você não conseguia prever, nem que seja descobrir algo sobre você mesmo, um traço, uma assinatura visual, uma temática no texto que sempre volta, se ver de outra maneira.
Acho que a arte é uma boa forma de exercitar o músculo de encarar o desconhecido. É se por fisicamente na situação de não saber como as coisas vão ficar exatamente ou que rumo vão tomar, de perder o controle por um momento. Comecei a escrever esse texto há duas semanas e é incrível poder ver ele materializado na frente de maneira totalmente diferente de como comecei, eu nem sabia onde queria chegar mas as palavras foram encontrando seu rumo, algo que a gente descobre dentro do ato de fazer.
Pra mim, criar é um exercício de coragem. Se ver como um explorador de terras nunca antes vistas ou que só se ouviu falar e ir saindo com o objetivo de desbloquear novas partes do mapa. Partes desconhecidas de si. E isso só é possível se a gente aceita que vai se perder, se a gente abraça o desconhecido, se aceita uma pequena morte de si e pratica sentir o luto.
Descobri que a palavra coragem vem de fazer as coisas com o coração. E ninguém é corajoso por fazer algo que não sente medo. Também tem aquilo de diferenciar coragem de burrice, que é uma coisa que confesso que ainda não sei, e que posso tá sendo burra, mas a gente descobre no processo. Todos esses questionamentos dessa nova fase da vida, de tentar explorar criativamente o que posso fazer, de como as coisas vão ser, de repente se transformaram em: quando o problema se apresentar, eu vou dar um jeito pra resolver. Isso dá um alívio pro esforço mental que é criar um milhão de cenários. Eu confesso que tô um pouco cansada disso, ser pessimista dá muito mais trabalho do que ser otimista.
Um abraço,
Karina :)
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reflexo
Eu estou motivada a escrever meu próximo quadrinho, dessa vez experimentando com personagens!!!!! Quero tentar contar uma história e fugir um pouquinho do autobiográfico, apesar de que, vai, a autoficção sempre vai tá lá, não tem jeito. Eu sinto que desde o Quase Tudo São Flores, venho entendendo um pouco mais meu processo: eu preciso ficar meses marinando o tema, ou explorando, divagando e navegando pelo desconhecido. Não sei se ele vai vir a luz do dia em algum momento mas quero muito que isso aconteça. Lá vou eu desbravar esse novo continente de tentar escrever algo longo e com personagens, pela primeira vez em muito tempo estou mais empolgada do que com medo desse desconhecido (até a próxima crise!).
Me identifiquei muito com seu texto. Esse medo de não ter os recursos necessários para cuidar da saúde sempre foi um fantasma em minha vida. Hoje minha preocupação é em relação à meus dependentes. Mas como você disse, "o medo do medo" é pior do que o imprevisto. Obrigado por compartilhar tudo isso aqui.
nossa, esse texto mexeu tanto aqui dentro, obrigada por criar <3