como a criatividade é uma espécie de esperança em si mesmo
e outras atualizações: CCXP, meu primeiro quadrinho e Kariloja!
“Filha, tu precisas acreditar em algo, nem que seja em ti mesma”, disse o meu pai em algum momento no calor de uma discussão sobre religião na minha adolescência. Lembro de torcer o nariz com isso de “precisar”, como se eu fosse obrigada. E, por mais clichê que seja a afirmação sobre acreditar em si mesmo, o estranhamento com o conceito de fé já tinha as suas raízes fincadas. Ninguém ensina na prática como é que é isso de acreditar em algo que a gente desconhece, e incluo aqui quem a gente é nesse vale do desconhecido. O sentimento é de se questionar quais são as garantias que a gente tem por despender uma energia tão grande em alguma coisa que a gente nem sabe que existe, quem é ou que vai se concretizar.
De alguma forma, levei essa frase escondida por anos na minha bagagem emocional, como um grampo de cabelo esquecido no bolso invisível da mala que você só encontrou porque vai viajar de novo, e ela voltou à tona junto com uma epifania. Tudo começou quando eu voltei de férias início de junho em uma baixa criativa horrível que se deu por uma série de fatores: um grande pesar pela quebra da rotina cheia de novidades vendo lugares que nunca tinha estado antes, da alegria de conviver com uma parte da minha família que não via fazia uma eternidade, de ter estado presente no melhor show que já fui na minha vida com uma das minhas melhores amigas e ter o prazer de conhecer pessoalmente artistas que eu admiro (um abraço, joanna) - para então, sem mais nem menos, ser abruptamente reinserida na dinâmica laboral de escritório e cadeira de rodinhas.
E, por mais que identificar a causa seja bom pra entender que essa espécie de melancolia que nos trava não vem do nada, acho que se limitar a essa abordagem analítica, quase científica, faz com que a gente tenha uma falsa sensação de controle sobre si mesmo. No fim das contas, mesmo identificando o problema, eu continuava não conseguindo pensar em nada. Nem boas ideias, nem péssimas ideias. Nenhuma ideia na verdade, nada.
MAS AÍ, diferente de vários outros momentos similares que já passei durante a vida, dessa vez incrivelmente não me desesperei. Não ter me desesperado nem ter entrado em uma crise pensando que “não sou boa o suficiente” fez eu me tocar que: a diferença de agora pras outras vezes é que agora eu acredito, não sei como, que de alguma forma eu vou voltar a ter ideias ou encontrar algo que me motive, que eu vou dar um jeito de dar algum jeito (mesmo que isso demore dias, meses ou anos). Eu tenho certeza que isso vai acontecer? Não. Mas ter essa espécie de esperança dá vontade de continuar, mantém a vontade de criar latente e eventualmente não obstrui os caminhos que aparecerem. Contudo, eu não tenho garantias. Lembrei do meu pai e me perguntei: será que agora acredito em mim? E foi então que eu percebi que a criatividade nada mais é do que um salto de fé em si mesmo.
E também entendi que o contrário de esperança é desespero. Era tão óbvio. Etimologicamente óbvio. Se você deixa de esperar, você desespera. A palavra esperança engana por parecer um ato passivo, mas pra esperançar algo é preciso se mover; até porque a esperança nada mais é que um desejo de mudança, né? De que as coisas vão melhorar, de que o mundo vai melhorar, de que você vai melhorar. A gente tem certeza de que vai melhorar? Não. Mas se a gente acha que não vai, então do que importa tudo isso - as coisas, o mundo, você. Ao mesmo tempo, não é como se a gente fosse obrigado a acreditar em algo, é que no fundo a gente precisa acreditar em algo pra viver. É mais sobre estratégia de sobrevivência do algo místico ou espiritual.
Antes eu me desesperava porque deixava de esperar que conseguiria, não à toa passei por vários hiatos de anos sem desenhar, tentando me encaixar em uma profissão que nada tinha a ver comigo e de alguma forma eu voltava pro desenho… ter passado por isso tantas e tantas vezes e de alguma maneira sempre conseguir voltar, fez eu internalizar de que eu sei que me expressar através da arte é algo imprescindível pra mim.
Então dessa vez tentei olhar com curiosidade pra esse momento, me olhar como um experimento e me perguntar “o que tá rolando aqui? como a gente pode ir saindo desse bloqueio aos poucos? bora fazer algo pra ver se melhora, não precisa ser nada muito grandioso, só segurar o lápis e riscar um traço conta. Não sabemos se vai funcionar, mas vamos tentar algumas coisas”. A abordagem dessa vez foi ir devagar e torcer que as coisas vão de alguma forma ir fazendo sentido. Eu sei de fato que as coisas vão fazer sentido? Não.
E voltar pro básico na arte pode ser pura e simplesmente: ver coisas que a gente ache legal, que a gente ache engraçado, que a gente chore. Pode ser também qualquer coisa que ressoe: perceber a forma que um traço faz curva, como o j da letra de alguém é bonito ou como alguém desenha olhinhos e narizes. Comecei então a procurar coisas que fazem sentido pra mim, como uma exploradora coletando itens dos lugares que passava. O ponto de partida veio de uma frase muito boa que ouvi uma vez, que é: quando estiver perdido, comece pelo o que você sabe - tentei então escavar as coisas que eu sei que gosto de olhar: uma paleta de cor bonita, fotos da Agnès Varda, quadrinhos manuais, a xícara que eu tomo café. Coisas que eu não sei explicar muito bem mas que sinto que fazem parte de mim.
No meio desse processo eu percebi que:
Descobrir novos artistas me faz ver um mundão de possibilidades
Muito se fala sobre a importância de referências no mundo criativo, mas acho que muitas vezes a gente fala de uma maneira direcionada demais. Por exemplo, tem um projeto pra determinada coisa e a gente pesquisa coisas que podem nos servir dentro desse propósito previamente estabelecido - o que é válido. Mas eu vejo pouca gente falando sobre a busca de forma despretensiosa, só navegando na internet (aqui já denota que nasci na década de 1990), vendo coisas que a gente acha legal mas sem necessariamente estar buscando um fim, e pode ter certeza que isso de alguma forma isso fica no nosso repertório mental.Dessa vez resolvi registrar a minha jornada exploratória: toda a vez que encontrava um trabalho que ressoava de alguma maneira em mim, eu salvava o nome da pessoa e seu site em uma planilha no Notion. Eu achei que funcionou porque o salvamento pelas redes sociais acaba sendo soterrado por um milhão de outras coisas e no site a gente navega naquele pedacinho de internet pensado pelo artista.
Ter um tema de interesse pra desenvolver um projeto pessoal é uma boa solução pra quando se sentir perdido
Algo muito legal de descobrir tanta gente nova e revisitar artistas que admiro é poder ter acesso aos projetos pessoais deles entrando em contato com possibilidades visuais e gráficas que nunca tinha parado pra pensar antes. E muitas vezes esses projetos pessoais não são alguma ideia extremamente mirabolante, eles falam muito mais sobre quais os interesses de cada artista, são temas que a pessoa gosta ou alguma ideia visual que faça sentido. Me senti muito inspirada a criar quando vi que poderia desenhar sobre qualquer coisa que eu sentisse vontade, por exemplo, bolos, ou pequenas coleções de derrotas pessoais, ou comidas que parecem com pessoas, ou criaturinhas mágicas ou até mesmo misturar um estudo de tipografia + um musical que amo.
Ouvir ou ler qualquer coisa que fale sobre criatividade me faz ter vontade de criar
Por exemplo, sempre quando tô na bad criativa, eu escuto o Creative Pep Talk, um podcast sobre criatividade que, infelizmente, só tem em inglês. Eu acompanho há bastante tempo e funciona como um verdadeiro salva-vidas artístico pra mim. Ou vejo os documentários da Agnès Varda porque ela fala muito sobre como ela cria e faz conexões da arte com sua vida pessoal. Também acompanho a newsletter do Austin Klean, o autor de Roube Como Um Artista, e o da Patti Smith. No geral, newsletters de artistas são um bom espaço pra saber que a gente não tá sozinho, espero que essa aqui sirva dessa maneira pra alguém também :)
Desenhar absolutamente QUALQUER COISA que estivesse ao meu alcance que eu achasse legal me ajuda a desenferrujar
Acho que quando a gente tá bloqueado criativamente fica difícil de se exigir qualquer coisa - são aqueles dias que só de ter sentado na cadeira já é uma grande vitória. Então achei que era uma boa procurar QUALQUER COISA pra rabiscar: um rostinho familiar, algo que me dê alegria ou só por pra fora como tô me sentindo em um autoretrato. O importante é: desenhar algo que te me dê vontade de desenhar, pelo menos nesse momento, mas é muito importante se por no movimento da prática. Movimentar a mão, ensaiar traços mesmo que saiam hesitantes, depois a gente vai lembrando como fazia. Inclusive, defensora ferrenha dos sketchbooks feios!!!!!
Bom, aí simplesmente estava nesse processo de recuperação, tateando e descobrindo coisas que pudessem me ajudar nesse momento nebuloso, quando dia 16 de junho sai o resultado da minha inscrição na Comic Con Experience (CCXP), que vai rolar de 30 de novembro a 03 de dezembro em São Paulo, e…
Eu sabia que era concorrido e não achava que não passaria porque pra mim é tudo muito surreal, mas de repente, BUM. E começou a maratona de até fim de novembro estar com o meu primeiro quadrinho pronto pra ser lançado, a minha primeira campanha de financiamento pra viabilizar ele e além disso a minha loja autoral.
Eu nunca fiz algo a longo prazo dessa maneira, é tudo meio aterrorizante, 5 meses é muito e pouco ao mesmo tempo porque falta um milhão de coisas pra fazer. Pensei de compartilhar na newsletter um diário desse processo, até pra poder organizar a cabeça e revisitar depois. Eu sinto que tem várias as abas que estão abertas na minha cabeça:
Finalizar o roteiro do quadrinho
Desenhar o quadrinho
Criar a campanha de financiamento coletivo no Catarse (inclusive a companha de divulgação)
Criar produtos da loja
Pensar em como divulgar nas redes sociais
Uma coisa que percebi foi: fazer muitas coisas pela primeira vez te suga mentalmente de uma forma inimaginável (isso fica de assunto pra próxima newsletter). Mas apesar de serem coisas que nunca fiz, de alguma forma sei que dá pra desenrolar, ou se tiver algum problema sei a quem poderia pedir ajuda. Acho também tudo fica mais fácil quando também existem pessoas que acreditam em ti. Todo esse texto pra dizer que finalmente entendi que a questão da fé em si mesmo fornece o conforto que a gente precisa pra continuar, o contrário de esperançar é desesperar, e entre as duas opções eu prefiro a primeira.
Essa edição acabou ficando gigante e vou ter que dividir em duas, até pra compensar o atraso, então em menos de 15 dias nos vemos de novo!
Um abraço e até a próxima :)
Karina
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reflexo
✸ Vez ou outra volto pra essa música que descobri através de uma playlist incrível (um abraço, Thi)
God is a concept
By which we measure
Our pain
I'll say it again
God is a concept
By which we measure
Our pain(…)
I don't believe in Beatles
I just believe in me
Yoko and me
eu também era do time que me desesperava, mas acho que depois da pandemia, parece que o desespero coletivo mudou algo em mim e hoje em dia eu já consigo pensar "bem, acho que não estou tendo ideias por isso isso e isso e ok". tirar esse peso é algo que fez mudar meu processo de criação e tornou as coisas um pouco (pelo menos) menos complexas. ps: tbm adoro a newsletter do austin kleon! boa sorte na sua campanha e parabéns pela seleção!
Já dizia Paulo Freire: esperança não do verbo esperar, mas do esperançar: levar adiante, construir, se juntar com outros e não desistir… impressionante como teus textos sempre parecem que me vem na hora certa. Obrigada mais uma vez, amiga. Te amo! Tô ansiosa pra comprar na kariloja ❤️