pra caso você ache que vai conseguir fazer alguma coisa sozinho
inclusive criar e fazer quadrinhos
Em 2014, a nadadora Nyad realizou o sonho e desafio pessoal de nadar de Flórida até Cuba em pleno mar aberto. Foram mais de 160km em que a atleta seria a primeira pessoa da história a fazer esse percurso sem uma gaiola de proteção, e estaria sujeita às mais diversas criaturas marinhas, condições meteorológicas instáveis e situações físicas extremas que poderiam causar desnutrição, hipotermia e alucinações por exaustão.
Ela havia tentado a primeira vez aos vinte anos e não conseguiu concluir o trajeto. Tentou uma segunda vez aos quarenta, depois uma terceira aos sessenta, e houve pelo menos outras duas até, finalmente, no auge de seus sessenta e quatro anos, conseguir a conjuntura ideal de travessia. Uma travessia que durou mais de cinquenta horas se movimentando por meio de braçadas sem sair da água.
O que me espanta nisso tudo é que ela estava lá, fisicamente lá. Durante os dois dias inteiros se movimentando por meio de braçadas, Nyad estava sozinha tentando encontrar forças dentro de si para continuar, seja meditando, rezando ou cantarolando mentalmente, formas de ainda ver sentido e concluir um desafio completamente arbitrário e autoimposto. Eu não consigo nem imaginar o esforço mental de encontrar mecanismos que não a fizessem desistir. Depois da mínima sensação de desconforto térmico, cansaço, sentir a pele toda engelhada, e o tédio que é repetir o mesmo movimento dia e noite, eu já teria dito "bom é isso, pra mim já deu, pessoal, eu que não vou me submeter de novo a essa situação quem escolhe passar por esse sofrimento é maluco”. Como ela conseguiu esse feito sozinha?
Eis então que quando Nyad pisa em Cuba, a primeira coisa que fala para os repórteres e as pessoas que a esperavam no outro lado do Estreito da Flórida foi: “Tenho 3 mensagens: Um. É que nunca devemos desistir." Justo. “Dois. Nunca é tarde para seguir seus sonhos.” Ela tinha sessenta e quatro anos e tentou várias vezes esse mesmo percurso, lembra? “Três. Nadar pode parecer um esporte solitário mas é um esporte de equipe”. Um esporte de equipe. Peraí, como assim de equipe?
Só então descobri que ela teve ajuda, foi pontualmente alimentada, hidratada e acompanhada por uma equipe que garantisse que a vida dela estivesse resguardada durante todo o trajeto. E não foi uma equipe de cinco pessoas, Nyad contava com mais de quarenta profissionais, entre eles: navegadores, biólogos, uma especialista em vespas-do-mar, pessoas para lidar com os possíveis tubarões, socorristas, um barco que a seguia no lado e patrocinadores que malmente bancaram a expedição. Contava também e principalmente com sua melhor amiga e treinadora, Bonnie.
Essa surpresa ao descobrir que ela não fez de fato tudo cem por cento sozinha não foi só meu. Ela foi indagada por vários jornalistas na preparação da maratona, com comentários do tipo: “Ah, mas você vai acompanhada de algum barco ou assistente ou coisa assim?”. E, em um TEDTalk que palestrou depois, ela comenta que tinha vontade de responder: “o que eles imaginam? que eu usasse meus poderes celestiais de navegação, carregasse um facão na boca, que pescasse os peixes e descascasse eles vivos enquanto nado, ao mesmo tempo em que carrego uma fábrica de dessalinização nas costas para conseguir me hidratar com água potável?”.
Nessa mesma fala, Nyad comenta: “nadar pode parecer o esporte mais solitário do mundo e, de muitas maneiras, é. Mas por outro lado, um lado mais importante, ele é um verdadeiro trabalho em equipe”. Equipe. De fato, ela nadou sozinha durante o trajeto, mas ela só conseguiu concluir porque tinha gente ao redor que trabalhava e torcia pra que ela concluísse essa empreitada.
O que a gente fala sobre a sociedade quando a gente valoriza apenas uma conquista enquanto individual e não coletiva? A gente preconiza tanto a independência como uma virtude e se sente mal de pedir ajuda, mas não vê que ser completamente independente é uma falácia, meio que a gente precisa do outro em todas as instâncias pra viver.
O incrível feito de Nyad não deixa de ser mais incrível porque tinha gente que possibilitou que ela concluísse o trajeto, muito pelo contrário, ela só conseguiu fazer algo tão inimaginável, expandindo os limites da capacidade humana porque teve auxílio de profissionais capacitados e pessoas que se preocupavam com o bem-estar físico e emocional dela no caminho. O feito só foi possível através de um time - um time que acreditava nela. Um time em que a conquista dela também fosse uma conquista deles.
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Não parece, mas fazer quadrinhos é difícil.
Você acredita e se importa tanto com um tema ou com uma história que está disposto a desenvolver ela por meses. Senta, escreve um roteiro, sofre achando ruim, reescreve, desenha 80 páginas a mão, seja no digital ou analógico. Você senta ali com o conflito que é ter que tomar uma decisão a cada momento. Essa linha vai pra esquerda ou pra direita? Eu ponho essa árvore aqui? Que cor eu uso pra finalização? Eu consigo desenhar esse cenário que pensei? Tudo isso lidando com a frustração do resultado da escolha de suas próprias decisões.
No final, é você que tá ali fazendo as coisas, tirando um pedaço de você em prol de uma narrativa que nem sabe se alguém vai ler. Se você vai conseguir chegar no outro lado da criação que é quando ela está criada, no mundo. Não mostra pra ninguém no estágio inicial, porque tá inseguro, e não mostra no estágio final porque além de estar inseguro, não vai dar tempo de mudar nada mesmo e vai ser muito pior se apontarem alguma coisa nesse estágio.
Eu acho que entendo um pouco a Nyad. A parte de entrar em um projeto completamente pessoal que você não sabe se vai concluir, de dar o sangue e tentar várias vezes. Ninguém atravessa um mar aberto, faz quadrinhos ou se coloca em situações igualmente estressantes em seus respectivos níveis porque tem certeza que ao chegar no outro lado vai ser um milionário, ou qualquer coisa do tipo, ainda mais porque quem cria meio que sabe onde tá se metendo. Acho que é uma parada muito mais sobre autorrealização, algo que nos move, que nos faz um pouco mais completos, que sugere algum sentido de estar aqui. Criar também é algo que desafia a existência humana.
Tudo começa com o primeiro impulso que leva a gente a querer nadar no desconhecido sem ter nenhuma perspectiva de retorno ou que chegaremos no outro lado do oceano. E mesmo que consiga, a gente nunca sabe muito o que vai encontrar no outro lado também, se as pessoas vão ler, se você vai ser compreendido, se vai ter conseguido se expressar.
E você só consegue criar se estiver minimamente bem. Se tiver algumas noções de segurança em dia. Se tiver um teto na sua cabeça, se você não tá com fome, se as dívidas não estão te afetando tanto mentalmente. Ou talvez, se você tem um espaço pra ficar sozinho e consiga pensar em paz, se você tem tempo pra pensar. Enfim, pode ser um milhão de situações e varia de pessoa pra pessoa. Não ter uma mínima estabilidade influencia não ter respiro mental pra criar, pra escrever, pra desenhar. Qualquer coisa parece muito mais urgente e importante do que criar.
O seu time é quem te tira desse vórtex de ansiedade, é quem te dá a esperança de poder criar algo. É saber que tem alguém que tá preocupado com você, que te chama pra ir na casa, pra passear, que te oferece uma janta, que você pode desabafar e que essa rede de apoio que você vai construindo pode te segurar em algum momento, principalmente no campo emocional, quando tudo tá despedaçando. Seu time. Ter alguém pra conversar quando empacar numa ideia, ouvir alguém falando algo que é a fagulha que faltava pra pegar no lápis, até alguém pra te indicar pra um freela que vai segurar as pontas no próximo mês, alguém que vai ajudar a divulgar suas criações, alguém pra abraçar um pouquinho quando as coisas apertarem ou ir no cinema pra espairecer.
Acho que a frase que mais ouço em rodas de quem faz quadrinhos é que fazer quadrinhos é um processo muito solitário. E é mesmo. É sua mão que começa a doer quando você tá escrevendo ou desenhando, mas pode ter certeza que a ideia ou desenvolvimento de histórias parte de conversas, contato e interseções sociais, de pessoas ao seu redor que podem te estender a mão ou por meio de ideias de outras pessoas que são transmitidas pelos filmes, trechos de poemas ou no verso de uma música.
Criar pode ser um trabalho solitário e, de fato, é, e por isso mesmo você vai precisar de um time.
Um abraço,
Karina :)
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✸ Na última vez que escrevi uma newsletter aqui, a campanha do Quase Tudo São Flores tinha se iniciado no Catarse, um ano, uma mudança de cidade, entrar e sair de um emprego depois… sou finalista do 36º Troféu HQMix na categoria Publicação Independente (Ed. Única) !!! E pensando aqui que se tem uma coisa que depende dos outros pra acontecer é a arte independente. Pra ela se manter viva, ela precisa de gente que leia, que divulgue, que fale pra outras pessoas, que passe a palavra adiante. Gente que acredita mesmo, acredita tanto que presenteia, que lembra de alguém, que fez com que a meta fosse batida no financiamento coletivo. Quando fiz o quadrinho no quintal da minha casa em Belém, eu não imaginava que ele teria a sorte de ter sido tão acolhido pelos meus amigos, pela minha família, por gente de todo o Brasil que se identificou com esse formato que nem sei dizer o que é direito. Eu tô muito, muito feliz! E se você é votante no HQMix, considera ler e votar (se quiser!) na HQ, a votação fica aberta até dia 17 de setembro de 2024 ✨
✸ Eu comecei a escrever sse texto logo depois de ter assistido a Nyad (2023), filme da Netflix com Annette Benning e Jodie Foster. É um filme bem sessão da tarde, motivacional e com efeitos especiais duvidáveis, mas me tocou tanto. Assisti nos primeiros meses da minha mudança pra São Paulo e chorava horrores porque achava que aqui eu não tinha um time, o que se comprovou mais uma ansiedade do que fato, porque primeiro, mesmo que virtualmente, as pessoas mais próximas a mim continuaram próximas, e segundo, aos poucos as raízes foram e continuam sendo criadas aqui e sou muito feliz pelas relações cultivadas.
Que delícia de news. Essa frase aqui ó, martelou fundo: "Criar também é algo que desafia a existência humana".
Criar é uma experiência de sentir. A gente precisa pegar algo no outro - e aí entram músicas, filmes, quadros, quadrinhos, livros e o que mais couber no nosso chapéu - e transformar em algo que a gente acha que vai fazer sentido pro mundo. E é lindo quando faz.
Eu costumava achar as coisas muito solitárias antes. Até descobrir que a gente precisa se envolver na arte dos outros até pra ver luzes e cores diferentes nas nossas. Hoje, me pego pensando na teia de referências que só cresce e que ajuda a não desistir quando a inspiração parece ter sido varrida para debaixo do tapete.
Enfim, obrigada por esse respiro, Karipola <3
Nos últimos anos tenho percebido muito o poder de trabalhar em equipe, mesmo quando encaro um trabalho que é por natureza solitária. Tem sido uma experiência e tanto poder confiar em outras pessoas que me ajudam a chegar do outro lado de travessias tão perigosas. Tenho me aventurado nas águas desconhecidas de fazer quadrinhos, cheia dessas incertezas e inseguranças que você relatou, e acho que não seria possível se eu estivesse sozinha. Suas palavras neste texto me representaram demais! E btw, meus parabéns pela indicação no HQ MIX! Torcendo por você <3
PS: faz um tempinho também escrevi sobre esse filme, pra falar da importância de colecionar fracassos (afinal, ela só conseguiu lá pela quarta tentativa!), e gostei muito da perspectiva que você trouxe! Sua versão ilustrada da Nyad ficou muito mais legal hahah! Bjo :)
https://alinevalek.substack.com/p/pronta-para-fracassar-de-novo