sobre arte e generosidade
o lado de quem doa e quem pede + financiamento coletivo da minha HQ Quase Tudo São Flores!!! 💐💐
O ano é 2010. Eu estava no início da faculdade de arquitetura, cheia de sonhos, tempo livre e com muito mais certeza sobre quem eu era do que eu tenho hoje. E lá estava eu, caminhando pelas ruas virtuais, procurando coisas que me interessavam sem necessariamente saber bem onde ia dar. Prática reforçada ao longo da década mas agora em uma paisagem muito mais apocalíptica de caos e poluição visual causado pelo excesso e descarte sem precedentes de conteúdo. Em algum momento daquela época, esbarrei com um vídeo da cantora Amanda Palmer sobre a Arte de Pedir e algo raro aconteceu: ele permaneceu comigo todos esses anos.
Nele, a artista fala sobre a importância de pedir ajuda e reconhecer que a gente precisa de amparo. Ela fala que podemos nos surpreender de onde essa ajuda pode vir e que se mostrar vulnerável é uma parte essencial de se estar vivo. Amanda foi uma das precursoras, ou pelo menos uma das principais divulgadoras, de plataformas de financiamento coletivo, consolidando sua carreira de forma independente através do apoio de quem gostava da sua arte.
Esse vídeo sempre me deixou hipnotizada porque ia contra a corrente de tudo o que escutava até então em uma criação que falava muito em caridade, doação e pedir a uma providência divina, mas que pouco se falava sobre pedir ao próximo. “Não incomoda os outros”, “tu tens que resolver os pepinos sozinha”, “como tu vai pedir, se não tem como pagar depois?”. Há uma certa áurea de vergonha que envolve a posição de precisar de algo que você não tem e que outra pessoa poderia prover momentaneamente, somado a um sentimento de culpa e obrigação moral de retornar tudo o que lhe foi dado exatamente na mesma medida - mesmo que o que foi dado não fizesse falta para a pessoa que proveu.
Dia desses eu me assustei ao me deparar com essa definição de generosidade no dicionário: “virtude daquele que se dispõe a sacrificar os próprios interesses em benefício de outrem”. Um sacrifício. Que doido como a gente não coloca o interesse coletivo como um interesse próprio, né? O que isso diz da gente enquanto sociedade?
Isso me faz pensar na arte e na quantidade de vezes que ela me ajudou. Assistindo a uma entrevista com os atores de Past Lives (2023), eles falam que uma das cenas do filme (a cena do bar, pra quem assistiu) foi baseado em um acontecimento real da vida da diretora Celine Song. Ao criar o filme com memórias tão pessoais e específicas e compartilhar um momento tão doloroso de vida seu, Celine tangenciou um momento de vida meu e me ajudou a me entender como me sentia.
Mesmo que talvez não tenha sido o intuito primordial da obra ajudar alguém, acredito que existe uma espécie de doação despretensiosa na arte. Doar uma parte de si, mesmo não sendo solicitado. Às vezes o artista trabalha sobre um determinado tema pra conseguir se entender, olhar de uma forma mais afastada pra ele ou pura e simplesmente se expressar. E, mesmo que seja ou pareça “egoísta”, a arte reverbera pelo simples fato de que a experiência humana na terra por si só é um ato compartilhado.
(tradução livre: eu acho legal a gente dividir o mesmo céu / em que sentido? / tipo, nós estamos debaixo do mesmo céu então meio que estamos juntos). (Aftersun, 2022. Dir: Charlotte Wells)
É como se arte fosse uma pilha de suprimentos que pessoas desconhecidas colocaram em cima de uma mesa no meio da rua próximo a uma placa “pegue se precisar”. Pode ter certeza que pra algum desamparado algo naquela pilha pode ser a diferença entre a vida e a morte. E praqueles que aceitam a ajuda, algo é transformado depois disso. Existe uma espécie de gratidão que só as pessoas que já passaram por alguma necessidade sabem o que é ter a mão estendida.
Muitas vezes essa doação na arte é intencional, como em formas de presentes. Lendo o livro1 do Austin Kleon tem um capítulo que ele comenta que muitas obras que a gente conhece são frutos de um artista presenteando outras pessoas que lhe são queridas, tem um trecho que ele fala: “nunca se sabe quando o presente para uma pessoa se tornará um presente para o mundo inteiro”. Um presente para o mundo inteiro, que bonito isso. Ele cita o escritor A.A. Milne que criou o Ursinho Pooh para o filho, e o C.S. Lewis que convenceu o Tolkien a transformar as histórias de fantasia que contava aos filhos no livro O Hobbit.
Quando compartilhei essa parte do livro no instagram, a Joanna - ilustradora que sou fã, tive a honra de conhecer no Rio de Janeiro e autora de uma das newsletters que mais gosto - respondeu com um texto que ela tinha escrito sobre essa temática há anos atrás e que deixo aqui um trecho:
todas as melhores ideias que eu tive surgiram em formas de presentes: o que eu poderia criar que eu faria tal pessoa que eu amo feliz? Mesmo quando tudo deu errado e as pessoas foram embora - a ideia ficou, mesmo quando eu não tive mais como presentear a pessoa que eu tive a intenção - o presente ficou e só ter criado aquilo já me fez feliz.
Eu sempre penso em uma cena de Adoráveis Mulheres (Little Women) que a Jo está na praia com a Beth, sua irmã mais nova que está adoecida. A Jo é escritora mas nesse momento específico está desestimulada com a escrita por uma série de infortúnios que lhe acometeram, inclusive e, principalmente, o estado em que a irmã se encontra. Nessa cena, ela lê um trecho em voz alta de um livro que tinha em mãos para a Beth, que comenta: “o texto é muito bonito, mas prefiro quando você escreve”. Jo diz que não consegue mais escrever e que vai abandonar de vez o ofício, Beth então fala: “escreva para mim (…) faça como a nossa mãe nos ensinou, faça por outra pessoa”.
A Anami me mostrou uma entrevista do Ethan Hawke sobre criatividade que provavelmente vai sofrer o mesmo destino que a palestra da Amanda Palmer e vou usar em basicamente todo argumento ou conversa de bar. Vou deixar o vídeo aqui:
A parte mais famosa dessa entrevista é quando ele fala que arte não é um artigo de luxo, é sustância. Criatividade humana é a natureza manifestada em nós. E ele fala que nós estamos aqui para tentar ajudar uns aos outros. Primeiro a gente sobrevive e depois prospera. Para prosperar a gente precisa se conhecer e se perguntar “o que eu amo?”. Ele diz que se você tiver ficar perto do que você ama, que você é é revelado pra você e se expande.
Uma vez conversando com o Armando sobre esse outro vídeo que fala sobre amizade ser algo revolucionário, eu pensei no quanto a arte já ganhou simplesmente no encontro de pessoas. Como obras que transformam a gente foram feitas para alguém, como os seres humanos tem esses padrões em suas relações, essa necessidade agoniante de poder se conectar.
A gente realmente esquece do poder do coletivo. O que a gente pode ser capaz de criar por alguém, o quanto que o sentimento por outro pode ser um ganho do mundo, não sendo necessariamente algo tangível ou material e por isso mesmo importante e necessário. Quantas músicas não foram feitas pra alguém, ou filmes, ou pinturas, ou comidas, ou poemas. Que coisa mais humana isso de criar algo pra alguém.
É difícil falar de amor sem ser piegas. Ele já foi a causa de muita dor durante a história humana, ou o que a gente acreditava que era amor e era outra coisa. Minha vó Celeste é uma dessas pessoas que acredita no amor, e me ensinou a procurar ele em todas as partes mas principalmente na natureza e nas pessoas.
Eu lembro da última visita que eu fiz no interior que ela mora aqui em Belém, ficar horas e horas conversando e em algum momento ela falar: “ai, minha neta, eu gosto tanto de conversar contigo porque tu presta atenção nas coisas que eu falo”. Isso me surpreendeu ao mesmo tempo que me emocionou. Fico triste de pensar que é a única coisa que posso dar (e malmente porque moramos longe) em comparação a tanto tempo, esforço, feijão e companhia que ela me fez durante a infância. É aquele sentimento que comentei de querer retribuir a mesma quantidade que um dia a gente recebeu, como se fosse possível quantificar o imensurável.
Quando ela disse isso eu me lembrei de uma frase da filósofa Simone Weil: “a atenção é a forma mais rara e pura de generosidade”. O que tem tudo a ver com arte também. E foi aí que percebi que arte tem tudo a ver com amor, por mais brega que isso soe. Amor por si, pelo outro, pela natureza, por algum tema que está sempre ali permeando a nossa vida, é que tá tudo conectado de alguma forma. Nunca tinha percebido que prestar atenção pudesse ser um exercício de generosidade porque muitas vezes é algo tão natural quanto piscar ou respirar, não é um grande sacrifício, como só assim validaria o dicionário. Mas talvez, mais uma vez, o capitalismo tenha deturpado conceitos importantes.
No mais, é isso, um abraço, fiquem atentos. E se quiser generosamente me doar um pensamento sobre o tema, só deixar um comentário aqui:
Karina :)
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reflexo
✸ A minha vó é parte essencial do Quase Tudo São Flores, o ensaio em quadrinhos que tô escrevendo e que vou lançar na Comic Con em São Paulo que vai acontecer do dia 29 de novembro a 3 de dezembro. Quem curte a newsletter tenho certeza que pode gostar do quadrinho. O financiamento coletivo pra custear a impressão e a viabilização do projeto continua aberto no Catarse até dia 07 de outubro! A gente conseguiu bater a meta em menos de 12h de campanha no ar!!! E agora entramos nas metas estendidas!! 😭✨ Se quiser conhecer mais sobre o projeto, apoiar esta empreitada e garantir o exemplar na pré-venda é só clicar aqui :) ✨
✸ Vou ficar um tempinho sem postar a newsletter até concluir a HQ, acho que vai rolar uma próxima edição em outubro ou em novembro 😭. Peço perdão pra quem acompanha todas as edições, mas prometo que em breve novos textinhos chegaram no seu e-mail, mais breve do que o tempo faz parecer :)
“Siga em frente: 10 maneiras de manter a criatividade nos bons e maus momentos”. Austin Kleon.
cara q texto lindo (chorei)
que saudade dessa newsletter meu deus do céu