Eu tô frustrada. Com muitas coisas. Assim como você provavelmente, por outras coisas completamente diferentes (ou as mesmas e a gente não sabe). Mas a que me motivou a escrever esse texto foi a seguinte: enquanto fazia o quadrinho da abertura tentei uma abordagem diferente da que eu geralmente faço, e me dediquei me preocupando com luz e sombras, testando vários acabamentos e pincéis e nunca parecia que chegava exatamente no que eu queria - quando percebi, estava bem uns 5 dias fazendo ele e nada de acabar. 5 dias (e pra mim eu ainda não acabei, apenas dei por acabado).
E, eu não sei você, mas quanto mais tempo eu passo realizando qualquer tarefa, menos eu vejo o sentido de continuar nela, porque: (1) é realmente difícil me manter motivada a longo prazo (isso porque o longo prazo é 5 dias, imagina 5 anos) (2) eu começo a não ver mais sentido naquilo que eu tô fazendo. E isso é muito triste.
Refletindo sobre o porquê disso, a primeira coisa que me vem à mente é: “eu tô demorando um tempão nisso aqui e provavelmente quando for publicado o tempo de vida vai ser o tempo de uma curtida ou do rolar de dedos pela tela, porque logo ele vai ser soterrado por milhões de outras coisas, e outros conteúdos e mais e mais e mais até ter caído no esquecimento, como se nunca tivesse existido, e esse tempo que me dediquei criando vai ter sido em vão”.
Eu queria entrar em uma linha argumentativa sobre por que os seres humanos ao longo da história sentem a necessidade de se expressar através de arte e de compartilhar com outros seres humanos (mas sinto que não tenho leitura, insights, conversas ou neurônios suficientes pra entrar nesse tópico). E aposto que ter um arcabouço teórico sobre o assunto não impediria que os questionamentos de sempre me visitassem: qual o ponto de tudo isso? de fazer as coisas que faço, se tudo parece supérfluo? por que ter tanto trabalho pra fazer algo? eu espero algum tipo de retorno? qual o SENTIDO disso? quem eu PENSO que sou?
Até chegar no ponto de se sentir completamente descartável.
Pausa. Sobre o descartável.
Já tem um tempo que começou a me irritar profundamente quando a gente comenta sobre algum artista e alguém fala “ah, eu conheço! eu consumo o conteúdo dele”. Eu não lembro muito bem quem nas ruas da internet eu vi falando sobre a problemática do termo consumir, do quanto se tornou banal falar “eu consumo” - esse conteúdo, esse artista, esse texto; ao invés de eu gosto, eu acompanho, eu leio.
Eu consumo.
Lembro de em uma conversa com um amigo (um abraço, Jean) buscar no dicionário o verbete “consumir” e ter ficado surpresa, apesar de ser óbvio, como toda a carga pejorativa que o verbo carrega se encaixa perfeitamente com o contexto virtual que ele é usado:
A sensação é essa. De tudo ser utilizado até o final, gasto até não sobrar mais nada, acabar por completo, ser engolido e devorado - nunca degustado. Me incomoda demais como a gente precisa consumir tudo em uma velocidade desumana (no sentido do que não é humano mesmo porque o tempo é o da máquina).
Eu às vezes me pergunto
Como tudo chegou nesse ponto
É tudo tanto
Eu vou acabar morrendo nas mãos de um celular
Do computador, da máquina
Que tem outra velocidade
Minha cidade
Transa pensando no gozo, paga pra ver o final
(Beleza Eterna, Tim Bernardes)
Nessa mesma conversa com o Jean, ele comentou uma coisa que ficou na minha cabeça sobre a sistemática dos stories (que veio do snapchat, que deve ter vindo de outro lugar): as mentes de titânio pensaram em um mecanismo pra te fazer entrar todos os dias na plataforma deles porque a dinâmica é que suma depois de 24h. Passou o tempo e você nunca mais vai ter acesso aquilo. Nunca mais.
Somado a isso, todo o sistema das redes sociais funciona na lógica de soterramento, toda a mecânica de arrastar o dedo pra cima, em uma linha vertical, a corda que a gente vai descendo entre tanto conteúdo, sem nunca conseguir tocar os pés no chão da postagem original, faz tudo parecer muito e impermanente.
E, pra lógica do mundo estar voltada para o consumo, é preciso que coisas sejam produzidas em massa. A santíssima trindade neoliberal: produção, conteúdo, consumo - alcançando níveis do nosso inconsciente que afetam a forma como a gente se vê no mundo e a forma como a gente mede o nosso valor (e isso lá precisaria de métrica?). É tanta produção que é preciso se destacar de alguma forma e, ao mesmo tempo que tudo tem que parecer inédito, tudo acaba ficando saturado porque pra conseguir criar tanto num ritmo tão alucinante é preciso de modelos, repetição e forma de bolo (quem dera ao menos tivesse o bolo).
Enquanto pessoa que cria coisas e que não consegue acompanhar esse ritmo, eu me frustro; tanto de não conseguir ser tão “produtiva”, quanto achar que o que eu faço é descartável.
Isso me lembra que eu quase nunca consigo acompanhar uma série quando ela tá em alta. Sempre passa, vejo as pessoas conversando e quando vou assistir meses depois, quero falar sobre a cena do episódio tal e ninguém mais nem lembra o nome dos protagonistas (inclusive eu mesma que talvez nunca tenha aprendido).
Parece que é muito mais difícil que algumas coisas fiquem retidas na gente porque é tanta coisa que a gente tem que tá por dentro que a memória não dá conta. E também não tô aqui pra falar que o entretenimento puro de só assistir algo rapidinho seja ruim, longe disso. Mas quero acreditar que tem algumas coisas que precisam de… um tempo pra decantar?
Eu gosto muito como quando alguma produção artística fica em mim e eu sempre volto nela como aconchego. O primeiro exemplo meio bobo que vem na cabeça é que sempre que em uma discussão sobre ciência vs. natureza eu lembro de Jurassic Park, ou quando a gente tá agoniado com o futuro eu lembro de uma frase de uma artista que descobri pelo instagram, a Laura Berbert: “o que vai acontecer já está acontecendo”; ou em conversas sobre a vida eu lembro desse poema da Wislawa Szymborska. Parece que essas obras conseguiram criar impressões em mim de uma forma que talvez eu não consiga transcrever em palavras.
A sensação é de que arte precisa de tempo, algo cada vez mais escasso e disputado, e espaço, porque arte no fim das contas arte é atenção - pra obra e pra si mesmo, um rebatimento.
Curiosamente, quase prestes a enviar essa edição da newsletter, eu descobri esse texto sobre o filme Sussurros do Coração, que é disparado o meu preferido do Studio Ghibli, e que fala assim:
“À parte das dificuldades sociais, o caminho de um artista é um caminho de autoconhecimento, de honestidade, de se despir, de se doar em forma de música, de um texto, um livro, um poema, uma pintura.
Um artista nunca sai do outro lado de um processo criativo feito com o devido esmero sem entender um pouco mais sobre si mesmo. Ao se esforçar para ir até o fim em uma criação, ele não só cria uma obra, mas também uma nova versão de si mesmo, compreendendo pedaços cada vez mais puros de sua personalidade, como quem remove a rocha que nos impede de ver uma pedra preciosa.
Mas e se, ao final de tudo, mesmo com todo o esforço, disciplina e cuidado aplicados, a obra não ressoar? Se, ainda assim, ela ficar feia, mal acabada e ninguém se conectar?
Apesar de ser mais fácil observar essas inseguranças em uma artista iniciante, como Shizuku [a protagonista do filme], na verdade, esse temor nunca se afasta por completo. É um preço que se paga.
Mas a alternativa é uma vida sem autenticidade, sem Verdade, sem a pureza do contato com as emoções e com a autoexpressão, com seu propósito. É uma mutilação terrível.”
Medium do Luri, que também tem uma newsletter que gosto muito.
Enfim, esse texto não tem uma conclusão, é mais um desabafo sobre querer permanecer um pouquinho.
Você se sente assim também?
Oi (con)sumido e tchau,
Karina
ilustro no instagram | falo bobagens no twitter
retrovisor
(essa seção é sobre coisas passadas)
✸ quadrinhos que fiz entre a newsletter passada e essa:
reflexo
(essa seção é sobre coisas futuras)
✸ Uma notícia que vou compartilhar por aqui por enquanto é que finalmente o plano de ter a minha loja com produtinhos com a minha arte vai sair! Tô muito emocionada porque só tá acontecendo porque alguém acreditou em mim (falando igual o discurso da Lady Gaga). Eu tô muito ansiosa com o que vem pela frente e por enquanto vou deixar aqui o logo que fiz porque achei fofinho! hihi
✸ Outra coisa é que me inscrevi no Artist’s Valley da CCXP 2023!!! Você que chegou até o final torça aí pra que seja aprovada, vou ficar feliz demais e vai ser uma realização massa esse passo. Mas se não rolar também, bola pra frente, independente do resultado já tá em produção um quadrinho que vai virar livro! <3
é uma sensação tão ruim, quando vc tá trabalhando na coisa e de repente sente vazio fazendo... pra mandar esse pensamento embora penso que, acima das pessoas verem ou não, o que eu tô criando é um mural MEU, sabe? pedaços de mim num determinado período de tempo, reflexos de coisas que ando "consumindo" (inclusive, andava muito agoniada com essa sensação também, comecei a anotar sobre certas coisas pra externalizar meus pensamentos antes de partir pra outras, especialmente livros, sinto que isso aumenta meu "tempo") e esse mural vai ficar pra sempre estampado na minha história, e vai inspirar os murais de outras pessoas e por aí vai... uma corrente de arte sobre arte sobre arte!
Também guardei o e-mail pra ler qdo tivesse tempo, e tenho dedicado o início das manhãs a algo importante: ler um trecho de um livro, alongar com calma e a partir de hoje ler newsletter guardadas.
Realmente, lembrei que vi a tirinha na rede social, li, olhei, senti, mas passei. Passei o olho rápido, mas ela ficou em mim, lembrei dela algumas vezes depois e tenho dela uma imagem forte. Às vezes a gente até olha rápido, mas algumas coisas ficam.