Cresci sendo ensinada, talvez assim como você, que o mundo dos sentimentos está dividido entre os bons e os ruins. Na primeira categoria estão os que a gente deve buscar sempre, são eles que tornam a existência humana plena e fazem a vida valer a pena, como: a alegria, a compaixão e a gratidão. Já a segunda categoria, fazendo jus ao termo segunda categoria, abarca aqueles sentimentos que são feios mas tão feios que doem, que a sequer possibilidade de senti-los torna você um ser humano vil e cruel, como: a inveja, o ciúmes e a raiva - pecados que fazem você levar de brinde também a culpa por senti-los.
O problema é: a gente não deixa de senti-los, não é mesmo?
E ultimamente eu venho sentindo muita raiva.
Me estranho porque comecei a ver um outro lado meu diferente do qual eu geralmente me apresento. E eu não fico feliz com isso. Parece que eu tô andando pra longe do que eu quero me tornar enquanto pessoa (embora o meu ideal de pessoa, olhando agora, me parece ser muito bacana com os outros e pouco comigo mesma).
Sempre gostei da narrativa de que as coisas possuem um lado luz e um lado sombra, não da maneira maniqueísta e sim da maneira da coexistência dos opostos, de que as coisas são (ou podem ser), ao mesmo tempo, os seus dois extremos e toda a escala de cinza que tem no meio.
Ano passado tinha decidido estudar mais sobre arte no geral, procurava acompanhar pessoas que falavam sobre o assunto e na época descobri um podcast chamado Art Curious. Dei play aleatoriamente em um episódio que é uma entrevista com o autor Kevin Townley, de quem eu nunca tinha ouvido falar, sobre o lançamento de seu livro chamado “Look, Look, Look, Look, Look Again: Buddhist Wisdom Reflected in 26 Artists” 1. Eu fiquei tão envolvida com a conversa que dei um jeito de conseguir o e-book pra ler.
O livro analisa a obra de 26 artistas mulheres sob a ótica de uma vertente da filosofia budista (The Five Buddah Families). Me chamou muito a atenção quando ele fala nessa vertente do budismo que uma forma de ver o sentimento era vê-lo como energia. O livro é separado em cinco seções onde cada uma trata de uma energia com exemplos visuais através de obras de arte representativas, seus rebatimentos com a história de vida da artista autora e como cada sentimento guiou (ou pode ter guiado) aquela produção artística.
Segundo o autor, livre de um juízo de valor de bem vs mal, o sentimento é apenas energia. E sendo energia, sua intensidade pode ser experienciada tanto de uma maneira negativa, de acordo com o grau que apegamento a ela, quanto de uma maneira sábia, quando você se permite sentir, entender e dar vazão a ela. Ou seja, todos os sentimentos podem carregar em si um lado luz e um lado sombra, uma sabedoria e uma ignorância - mas eles por si só apenas são.
Eu lembro que no episódio o autor passa um trecho considerável falando sobre a raiva e comenta que a sua energia, chamada de Vajra, carrega a sabedoria semelhante a de um espelho (“mirror-like wisdom”) no sentido de que: a raiva reflete a situação que está acontecendo, ela é penetrante, ilumina tudo e você consegue finalmente ver o arranjo das circunstâncias em que você se encontra.
Quando você tá puto, uma eletricidade grande te atravessa, e te faz acordar. A raiva é o sentimento que advoga pela gente, que dá a força e a indignação necessária pra se impor e falar: “eu não mereço passar por isso” ou “isso não é justo”.
O autor fala que se livrar completamente da raiva é se livrar do seu próprio orgulho, é abdicar de ter uma compreensão do que tá acontecendo, da vontade de se mobilizar, de se comunicar e mudar. E se livrar do seu orgulho é perder a capacidade de ver o quanto o seu redor é rico, valoroso e que você merece existir.
(Pausa pra algo muito aleatório mas que achei que faz sentido)
Um dia desses estava em uma livraria com uma amiga minha (um abraço, Anami) e a gente viu um livro do Valter Hugo Mãe chamado O Paraíso são os Outros. Ela comentou sobre o nome ser uma referência a uma peça2 do Sartre de onde vem a famosa frase: o inferno são os outros. Na peça é trabalhado que o outro é indispensável para conhecer a si mesmo, e que é no se relacionar que o ser humano consegue construir sua própria identidade - algo que pode ser muito conflituoso.
Comentando sobre o título, ela falou algo do tipo: “se parar pra pensar o inferno não são os outros, na verdade ele só reflete quem nós somos, até porque… o inferno é diferente pra cada pessoa”, e parece que finalmente eu entendi o que o autor queria dizer com isso da sabedoria do espelho.
No mundo as coisas só acontecem, independente de cada um, mas as respostas aos acontecimentos são apenas nossas. Todos os fenômenos são reflexos da nossa própria mente. O autor fala que uma mente esclarecida se comporta como um espelho - livre de obscuridades, simplesmente refletindo de volta a realidade enquanto ele se mantém intacto, sem marcas de impressão digital o embaçando.
“What you’re looking for you’re looking at” , traduzindo e perdendo a beleza da frase, como: “você já está olhando para aquilo que você procura”. O autor discorre que essa é natureza da energia da raiva - a gente sente elas em situações que refletem algo que a gente se importa.
Conversando com uma amiga sobre a raiva (um abraço, Lenu), ela falou que se lembrou de uma música:
Quem não sabe amar tá perto do cemitério
Levei isso a sério e a morte não me terá
Enterra o que te fere e acaba com o mistério
Bom que nasce em outra vida e não na TerraQuem só pode amar também tá perto de morrer
O ódio é importante até pra você aprender
A se defender das coisas que a vida dá
A se defender dos outros e de vocêPiou (part. Hot e Oreia e Rosa Neon), Rap Box
Por outro lado, se você se apega e se identifica profundamente com a sua emoção você pode se cegar. O texto todo não é sobre apontar o dedo na cara de alguém, agredir ou provocar traumas a outrem sob a justificativa de que por estar sentindo alguma coisa você tem o direito de agir como quiser. Não. É mais sobre sentir e não fingir pra si mesmo que nada tá acontecendo.
No fim das contas, passei a admirar a raiva, no sentido de contemplar mesmo, essa energia direcionada que aponta pra uma causa, pra uma indignação e uma injustiça. Eu percebi que das vezes não me permiti sentir ela, ela se voltou contra mim em pensamentos do tipo: por que não impus meu limite? Por que deixei falarem assim comigo? Perceber a importância, como meu corpo reage a certos sentimentos parece que me torna mais… consciente? E não digo de uma maneira a racionalizar eles, mas de se permitir sentir mesmo, de reconhecer, olhar com curiosidade.
Por fim, tem uma parte do livro que ele fala algo que ficou na minha cabeça: de que raiva sem ódio é compaixão. Quero poder sentir raiva e me olhar com mais carinho.
Um abraço,
Karina
ilustro no instagram | falo bobagens no twitter
Pra compartilhar:
retrovisor
(essa seção é sobre coisas passadas)
✸ Esses dias terminei de assistir Beef (acho que demorou um mês pra acabar), e coincidentemente fala muito sobre raiva também. Eu adorei, não amei, mas gostei muito e me deixou reflitona. Como passei um tempo assistindo os personagens ainda estão comigo. Fico pensando em como as vezes a gente só quer ter a segurança de que alguém ama a gente inclusive nos nossos piores momentos.
✸ Publiquei duas histórias do Funktoon! Uma plataforma brasileira de leitura de quadrinhos nacionais, eu amo muito. Você pode pesquisar Karipola na busca do aplicativo ou acessar o link direto pra elas por aqui:
Chega de ser people pleaser: https://funktoon.com/serie/549
reflexo
(essa seção é sobre coisas futuras)
✸ O andamento da Kariloja tá parado por motivo de… FÉRIAS! Nem acredito!! Inclusive terminando de escrever essa edição da newsletter no Rio de Janeiro, me sentindo muito chique.
quadrinhos entre newsletters
Nossa, essa semana postei um monte de coisa, isso é muito fora do meu personagem, mas incrivelmente foi de uma maneira orgânica e fui fazendo o que dava vontade. Vou deixar alguns aqui, mas dá pra conferir todos no instagram:
“Olhe, olhe, olhe, olhe, olhe de novo: a filosofia budista refletida em 26 artistas” - infelizmente não achei a versão em português do livro porque ele é bem recente.
A peça se chama Entre quatro paredes, escrita por Sartre em 1945. A premissa é que a peça fosse escrita para três amigos atores em que nenhum tivesse mais destaque que o outro, a ideia que o Sartre trouxe foi de colocá-los presos no inferno de maneira que cada personagem agisse como carrasco dos outros dois.
nossa, obrigada demais por esse texto. caiu como uma luva aqui.
às vezes a gente sente menos, e às vezes sente de mais. o difícil aqui é equilibrar os sentimentos que vão me consumindo e escalonando de um jeito muito bizarro. tô refletindo em como tentar não permitir como essas coisas não tirem o melhor de mim.
Lembro que desde que vi no Instagram uma quote dessas de auto cuidado que dizia que “a raiva é a parte de você que se importa com a forma que você é tratado” ou algo assim tenho tentando mudar essa relação com os nossos próprios sentimentos, afinal não são todos eles a parte que se importa??? tem sido uma jornada desafiadora (literalmente as vezes incorporo o dr fred nicacio e peço um tempo pra processar as minhas emoções) mas tem sido libertadora também!!! Obrigada pelas palavras sempre acolhedoras amiga ❤️❤️❤️❤️